ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. APREENSÃO DE PAPAGAIO. ANIMAL ADAPTADO AO CONVÍVIO DOMÉSTICO HÁ MEIO SÉCULO. POSSE MANTIDA COM A TUTORA DO ANIMAL. MULTA ADMINISTRATIVA AFASTADA.
- Papagaio (Amazona aestiva) criado em cativeiro há meio século (50 anos), sem condição de ser reintegrado ao seu habitat natural. O longo período de vivência em cativeiro doméstico mitiga a sua qualificação como silvestre. Precedentes do STJ.
- A Lei 9.605/1998 autoriza o juiz, ante as circunstâncias do caso concreto, a conceder perdão judicial nos crimes contra a fauna. Essa disposição é extensiva à exclusão da multa administrativa nas mesmas condições.
- Ante as especiais circunstâncias do caso, deve ser excluída a multa aplicada à tutora da ave, mantendo-a como sua fiel depositária.
- Recurso conhecido e provido. (TJ-DF 07007633620208070018 DF 0700763-36.2020.8.07.0018, Relator: MARIO-ZAM BELMIRO, Data de Julgamento: 08/04/2021, 8ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no PJe : 16/04/2021 . Pág.: Sem Página Cadastrada.)
RELATÓRIO
Cuida-se de apelação interposta pela autora (ID 20549963) contra a sentença (ID 20549960) prolatada pelo MM. Juiz de Direito da Vara de Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário do DF
que, nos autos da ação anulatória ajuizada por TEREZINHA VICENTINA SOARES em desfavor de
INSTITUTO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS HÍDRICOS DO DISTRITO FEDERAL – BRASÍLIA AMBIENTAL (IBRAM/DF), julgou improcedentes os pedidos.
Inconformada, a recorrente defende, preliminarmente, a ocorrência de cerceamento a seu direito de defesa, porquanto foi-lhe denegada a produção probatória para demonstrar em que circunstância ocorreu a operação, a situação em que o animal era criado, bem como a reação deste no momento que foi abordado pelo agente do IBRAM.
No mérito, afirma que a presunção de legitimidade do ato administrativo é relativa, qualidade desconsiderada pelo douto Juiz a quo.
Alega que o poder de polícia deve ser exercido em consonância com a necessidade, a proporcionalidade e eficácia da medida a ser efetivada pela autoridade administrativa, sob pena de cometimento de injustiça social.
Requer a exclusão integral da multa que lhe foi imposta ou, de forma subsidiária, sua minoração em 90% (noventa por cento).
Por fim, reitera o pleito afeto à concessão da gratuidade de justiça.
O apelado apresentou contrarrazões (ID 20549970), postulando o afastamento da preliminar e, no mérito, o desprovimento do recurso.
A douta Procuradoria de Justiça, no parecer da lavra da eminente Procuradora de Justiça, Dra. Benis Silva Queiroz, oficiou pelo conhecimento e desprovimento do recurso (ID 20858162).
VOTO
Trata-se de ação anulatória ajuizada por TEREZINHA VICENTINA SOARES, no intuito de excluir ou, de forma subsidiária, reduzir a multa que lhe foi imposta em razão de deter, de forma clandestina, a posse de pássaro legalmente protegido.
O douto Sentenciante julgou improcedente o pleito inicial. Inconformada, a recorrente, em preliminar, aponta nulidade na sentença em decorrência de
cerceamento ao direito de defesa e, no mérito, defende que a presunção de legitimidade do ato administrativo é relativa e que o poder de polícia deve ser exercido em consonância com a necessidade, a proporcionalidade e a eficácia da medida.
Requer a anulação da multa que lhe foi endereçada e a consequente supressão de seu pagamento ou, de forma subsidiária, a minoração do valor da sanção em 90% (noventa por cento), e reforça sua condição de beneficiária da gratuidade de justiça.
Inicialmente, registre-se que o pedido relativo ao deferimento da benesse da justiça gratuita sequer pode ser conhecido.
Isso porque já houve o agraciamento em decisão interlocutória preclusa (ID 20549926). Inexistente, portanto, o interesse recursal no pedido. Quanto ao mais, admito e recebo a apelação no duplo efeito e dela conheço, presentes os requisitos legais.
A prova que a parte pretendia produzir tinha o escopo, segundo a própria, de documentar circunstâncias que poderiam afluir para a configuração de circunstâncias atenuantes, derivando na redução da multa, nos moldes do art. 29, § 2º, da Lei 9.605/1998.
No entanto, o contexto em tese favorável somente é considerado se a guarda doméstica for de espécie silvestre não considerada ameaçada de extinção, o que não corresponde à hipótese dos autos.
Ou seja, os fatos que seriam demonstrados pelas provas requeridas pela apelante em nada influiriam o resultado da lide, razão pela qual não há que se falar em cerceamento de defesa.
No mérito, compulsando os autos, apreende-se que foi lavrado o Auto de Infração nº 1874/2018 em desfavor da recorrente pela prática da conduta de “utilização da fauna silvestre sem autorização do órgão ambiental: um Amazona aestiva (papagaio verdadeiro) sem anilha”, incidente no artigo 24 do Decreto Federal nº 6.514/2008 e no artigo 70 da Lei nº 9.605/1998.
As penalidades cominadas foram de multa no valor de R$5.000,00 (cinco mil reais) e apreensão do espécime. A pretensão recursal é no sentido de excluir o valor da multa ou reduzi-lo.
Relembre-se que o ato administrativo, como é de comum sabença, goza da presunção de legitimidade e legalidade, o que significa dizer que só pode ser desconstituído por prova cabal em sentido contrário.
Mutatis mutandis, confiram-se ementas de acórdãos desta egrégia Corte de Justiça:
PROCESSO CIVIL E DIREITO ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO CÍVEL. PROGRAMA HABITACIONAL. CODHAB/DF. CONVOCAÇÃO PARA ENTREGA DA DOCUMENTAÇÃO. PROCESSO DE HABILITAÇÃO NÃO FORMALIZADO. MÉRITO ADMINISTRATIVO.
- O programa Morar Bem destina-se à implementação de política pública ao direito social à moradia ( CF, art. 6º) a pessoas que preencham os requisitos para inscrição no Cadastro da Habitação do Distrito Federal.
- O art. 4º da Lei Distrital n. 3.877/2006 elenca os requisitos para participação dos interessados nos programas habitacionais de interesse social.
- A presunção de legalidade e veracidade que reveste o ato administrativo, somente pode ser afastada mediante prova cabal e inconcussa capaz de demonstrar o contrário.
- Ao Judiciário só é permitido revisar os atos administrativos quando eivados de ilegalidade ou abuso de poder, sob pena de ferir o princípio da separação dos poderes.
- Convocada a candidata a apresentar a documentação e não tendo comprovado os seus dados, não se tem como formalizar o seu processo de habilitação, tendo em vista ter agido de forma desidiosa ao não comparecer no prazo estabelecido pela administração.
- A convocação para habilitação para recebimento de moradia no programa Morar Bem configura mera expectativa de direito, e não direito adquirido, haja vista se tratar de uma das fases do procedimento, o qual visa à aquisição do imóvel.
CIVIL E PROCESSO CIVIL. ADMINISTRATIVO. DESVIO DE FUNÇÃO. EXERCÍCIO DE FUNÇÃO DE CHEFIA. NÃO COMPROVADO POR PROVA ROBUSTA. ÔNUS DA PROVA. AUTOR. PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE E VERACIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO. APELO CONHECIDO E DESPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA.
I. Na clara dicção do artigo 373, inciso I, do Código de Processo Civil, o ônus da prova
quanto ao fato constitutivo do direito, incumbe ao autor, razão pela qual é notório que o autor deve trazer documentação hábil a comprovar suas alegações, sob pena de seus pedidos serem rejeitados, caso paire controvérsia sobre a matéria fática.
II. Em casos peculiares, como o caso em testilha, mostra-se ainda mais necessária a cabal demonstração do desvio de função, tendo em vista que, como cediço, a atuação da administração pública presume-se pautada na legalidade, já que é regida por leis administrativas que conferem aos atos administrativos, entre os quais os de designação e de destituição de função comissionadas, a presunção de legitimidade e veracidade.
III. Não havendo prova suficiente para infirmar os atributos do ato administrativo, tem-se que os mesmos prevalecem, não sendo possível reconhecer qualquer desvio de função.
IV. Apelação Cível conhecida e, no mérito, desprovida. Sentença mantida. (Acórdão n.1017337, 20150111431034APC, Relator: GILBERTO PEREIRA DE OLIVEIRA 3ª TURMA CÍVEL, Data de Julgamento: 10/05/2017, Publicado no DJE: 19/05/2017. Pág.: 466/476).
A apelante tenta anular o ato sancionatório que, como demonstram os autos, apresenta os requisitos formais e materiais dentro da legalidade, porquanto as penas aplicadas são exatamente aquelas previstas pelo Decreto Federal nº 6.514/2008 e pela Lei nº 9.605/1998, quais sejam, multa de $5.000,00 (cinco mil reais) e apreensão do animal. Na aplicação da multa foram obedecidos os
princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
Como bem anotado pela douta Procuradora de Justiça, a baixa compreensão e escolaridade alegadas pela parte não são aptas a atenuar ou excluir a multa, “na medida em que a proibição de manter animais silvestres em ambiente doméstico, há anos é amplamente divulgada em diversos veículos de comunicação” (ID 20858162 pg 5).
Destarte, entendo que o r. julgado hostilizado encontra-se lídimo, motivo pelo qual merece a apelação ser desprovida. Por tais fundamentos, nego provimento ao recurso e mantenho integralmente os termos da r. sentença.
Em atenção ao disposto no § 11 do art. 85 do CPC, majoro em 2% (dois por cento) os honorários fixados anteriormente em desfavor da recorrente, perfazendo o total de 12% (doze por cento) do valor da causa, considerando o trabalho adicional realizado em grau recursal pelo patrono da parte contrária.
Suspende-se a exigibilidade para a recorrente (ID 20549926), conforme disposto no art. 98, § 3º, do Código de Processo Civil.
O Senhor Desembargador DIAULAS COSTA RIBEIRO – Relator Designado e 1º Vogal Divirjo do voto do Relator,
A apelante foi multada pelo Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos do Distrito Federal -Brasília Ambiental (IBRAM/DF) por manter consigo um papagaio (Amazona aestiva), com idade estimada em 50 anos. Não há prova de maus-tratos ao animal. A infração é de mera conduta.
O Relator mantém a punição. O recurso é para excluir ou minorar a multa. Considero que, diante do tempo de cativeiro, estimado em 50 anos, é duvidosa a conclusão de que o animal mantém-se na classificação de “silvestre” para a tipificação legal. Há vários precedentes do STJ nesse sentido. Se não deve ser incentivado o “costume” de se criar papagaios em casa, também não pode ser
ignorado que há exceções pontuais. Tanto que o IBRAM deixou a ave com a apelante, que aceitou o encargo de fiel depositária, por não haver mais possibilidades de readaptação ao seu habitat natural.
Apesar de reconhecer esse quadro, o IBRAM aplicou à apelante multa de R$ 5.000,00, prevista no art. 24, II do Decreto Federal nº 6.514/2008:
“Art. 24.Matar, perseguir, caçar, apanhar, coletar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida: Multa de: (…) II-R$ 5.000,00 (cinco mil reais), por indivíduo de espécie constante de listas oficiais de fauna brasileira ameaçada de extinção, inclusive da Convenção de Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção-CITES.”
O § 2º do art. 29 da Lei 9.605/1998 autoriza o juiz a conceder perdão judicial e a não aplicar a pena nos casos que epecifica:
“§ 2º No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena.”
O § 4º do art. 24 do Decreto Federal nº 6.514/2008 tem a mesma solução para as multas administrativas:
Pela idade do papagaio é fácil concluir que o início de seu cativeiro é anterior a todas as leis citadas. Não fosse a infração classificada como permanente, a penalidade estaria prescrita sob qualquer âmbito, penal ou administrativo. Também é factível, como entendeu o STJ, que sua classificação como “silvestre” deve ser mitigada: Nesse sentido:
ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. APREENSÃO DE PAPAGAIO. ANIMAL ADAPTADO AO CONVÍVIO DOMÉSTICO. POSSIBILIDADE DE MANUTENÇÃO DA POSSE DO RECORRIDO. REEXAME DO CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. SÚMULA 7/STJ.
In casu, o Tribunal local entendeu que “não se mostra razoável a devolução do papagaio ‘Tafarel’ à fauna silvestre, uma vez que está sob a guarda da autora há pelo menos vinte anos, sendo certa sua adaptação ao convívio com seres humanos, além de não haver qualquer registro ou condição de maus tratos”. Vale dizer, a Corte de origem considerou as condições fáticas que envolvem o caso em análise para concluir que a ave deveria continuar sob a guarda da recorrido, porquanto criada como animal doméstico.
Ademais, a fauna silvestre, constituída por animais “que vivem naturalmente fora do cativeiro”,
conforme expressão legal, é propriedade do Estado (isto é, da União) e, portanto, bem público. In casu, o longo período de vivência em cativeiro doméstico mitiga a sua qualificação como silvestre.
A Lei 9.605/1998 expressamente enuncia que o juiz pode deixar de aplicar a pena de crimes contra a fauna, após considerar as circunstâncias do caso concreto. Não se pode olvidar que a legislação deve buscar a efetiva proteção dos animais, finalidade observada pelo julgador ordinário. Incidência da Súmula 7/STJ.
Precedentes: AgRg no AREsp 333105/PB , Relatora Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, DJe 01/09/2014; AgRg no AREsp 345926/SC , Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe 15/04/2014; REsp 1085045/RS , Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe 04/05/2011; e REsp 1.084.347/RS , Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe 30/9/2010.
Agravo Regimental não provido.
( AgRg no REsp 1483969/CE , Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 04/12/2014)
Considerando as especiais circunstâncias do caso, dou provimento ao recurso para excluir a multa aplicada à apelante, mantendo, contudo, a condição de fiel depositária da ave, caso ainda esteja viva.
DISPOSITIVO
Dou provimento ao recurso para excluir a multa administrativa (R$ 5.000,00) imposta à apelante pelo Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos do Distrito Federal – Brasília Ambiental
(IBRAM/DF)
É o voto.