REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. INSTITUIÇÃO DE SERVIDÃO DE PASSAGEM PARA DAR ACESSO À PRAIA. AUTO DE INFRAÇÃO NULO. AUSÊNCIA DE DESCRIÇÃO DO FATO QUE CONFIGUROU INFRAÇÃO À LEGISLAÇÃO AMBIENTAL. OFENSA AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA DOS IMPETRANTES. NECESSIDADE DE PROCESSO ADMINISTRATIVO REGULAR. SENTENÇA CONCESSIVA DA SEGURANÇA MANTIDA PARA ANULAR O AUTO DE INFRAÇÃO. REMESSA DESPROVIDA.
Por afronta aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, padece de nulidade o auto de infração que não descreve de forma detalhada os fatos ou circunstâncias que configuram infração à legislação ambiental.
(TJ-SC – Remessa Necessária Cível: 03021629820188240007 Biguaçu 0302162-98.2018.8.24.0007, Relator: Francisco Oliveira Neto, Data de Julgamento: 18/06/2019, Segunda Câmara de Direito Público)
RELATÓRIO
Trata-se de reexame necessário contra sentença proferida pelo Juízo da 2ª Vara Cível da Comarca de Biguaçu nos autos do mandado de segurança impetrado contra ato supostamente ilegal consistente na emissão do auto de infração ambiental por obstrução de acesso à praia.
O provimento jurisdicional foi proferido nos seguintes termos:
“Ante o exposto, com fundamento no art. 487, I, do Código de Processo Civil e na Lei n. 12.016/2009, JULGO PROCEDENTES os pedido formulados na inicial e CONCEDO A SEGURANÇA, para confirmar a liminar e DECLARAR nulo o Auto de Infração Ambiental.
Ascenderam os autos a este Tribunal. A douta Procuradoria-Geral de Justiça opinou pelo conhecimento e pelo desprovimento da remessa para manter a sentença concessiva da segurança.
VOTO
Destaca-se que o provimento jurisdicional foi prolatado sob a égide do novo ordenamento processual, nos termos do enunciado administrativo n. 3 do STJ [“aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC”].
Superada essa fase, passo à análise do feito.
Segundo dispõe o art. 1º da Lei n. 12.016/09: “Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça.”
O direito líquido e certo, portanto, é aquele que deve estar expresso na norma legal e vir acompanhado de todos os requisitos necessários ao seu reconhecimento e exercício no ato da impetração, por prova pré-constituída incontestável, para que não pairem dúvidas ou incertezas sobre esses elementos, justamente porque no mandado de segurança não há instrução probatória.
Trata-se de mandado de segurança que, em sentença do juízo a quo, concedeu a ordem para anular o auto de infração ambiental que aplicou sanção em face de restrição de acesso à praia por ausência dos requisitos do ato administrativo praticado.
Discorreram os impetrantes, que foram autuados pela autoridade ambiental pela suposta prática da infração de obstrução de acesso à praia, ato administrativo este formalizado no Auto de Infração Ambiental.
Asseveraran que, “com base no referido auto de infração, o agente fiscal municipal determinou a abertura compulsória dos portões do imóvel de propriedade dos Impetrantes, localizada na Costeira da Armação da Piedade.
Aduziram, ainda, que o auto de infração supracitado é nulo pois o foi praticado por ausência dos elementos essenciais de validade.
Quanto à forma asseveraram que (a) o auto não indicou qualquer dispositivo legal ou regulamentar infringindo; (b) o auto se resume a indicar a suposta obstrução de acesso à praia sem qualquer embasamento legal; e (c) não houve sequer a concessão de prazo para regularização da situação.
Sobre o motivo, destacaram que é genérico porque só consta “obstrução de acesso à praia conforme exigido pelo Ministério Público”. Já quanto ao objeto, argumentaram que houve violação ao direito de propriedade e desrespeito ao princípio do contraditório e da ampla defesa.
No caso em cotejo, a decisão proferida em primeira instância merece integral confirmação, à medida que o ato administrativo combatido não observou efetivamente os ditames legais aplicáveis à espécie.
Pois bem. Primeiramente, impende ressaltar que o acesso à praia encontra previsão legal no art. 10 da Lei 7.661/88, que assim dispõe:
“Art. 10. As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar , em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica.
§1º. Não será permitida a urbanização ou qualquer forma de utilização do solo na Zona Costeira que impeça ou dificulte o acesso assegurado no caput deste artigo.
§2º. A regulamentação desta lei determinará as características e asmodalidades de acesso que garantam o uso público das praias e do mar.
§3º. Entende-se por praia a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subseqüente de material detrítico, tal como a reias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação nnatural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema.”
Por seu turno, o regulamento mencionado no § 2ºdo artigoo supracitado é o Decreto Federal n. 5.300/2004, que, em seu art. 21, preceitua:
“Art. 21. As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse da segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica.
§1º O Poder Público Municipal, em conjunto com o órgão ambiental, assegurará no âmbito do planejamento urbano, o acesso às praias e ao mar, ressalvadas as áreas de segurança nacional ou áreas protegidas por legislação específica, considerando os seguintes critérios:
I – nas áreas a serem loteadas, o projeto do loteamento identificará os locais de acesso à praia, conforme competências dispostas nos instrumentos normativos estaduais ou municipais;
II – nas áreas já ocupadas por loteamentos à beira mar, sem acesso à praia, o Poder Público Municipal, em conjunto com o órgão ambiental, definirá as áreas de servidão de passagem, responsabilizando-se por sua implantação, no prazo máximo de dois anos, contados a partir da publicação deste Decreto; e
III – nos imóveis rurais, condomínios e quaisquer outros empreendimentos à beira mar, o proprietário será notificado pelo Poder Público Municipal, para prover os acessos à praia, com prazo determinado, segundo condições estabelecidas em conjunto com o órgão ambiental.
§2º A Secretaria do Patrimônio da União, o órgão ambiental e o Poder Público Municipal decidirão os casos omissos neste Decreto, com base na legislação vigente.
§3º As áreas de domínio da União abrangidas por servidão de passagem ou vias de acesso às praias e ao mar.”
Desta deita, ainda que o fim buscado pela Municipalidade seja legítimo, no sentido de garantir o acesso à praia (instituição de servidão de passagem administrativa), constata-se que o ato impugnado (auto de infração ambiental) é absolutamente genérico, carecendo de maiores informações sobre as providências prévias adotadas pelo Município de Governador Celso Ramos.
Ademais, o art. 97 do Decreto n. 6.514/2008 prevê que “O auto de infração deverá ser lavrado em impresso próprio, com a identificação do autuado, a descrição clara e objetiva das infrações administrativas constatadas e a indicação dos respectivos dispositivos legais e regulamentares infringidos, não devendo conter emendas ou rasuras que comprometam sua validade.”
Ainda que se possa cogitar de alguma liberalidade da Administração, o que se tem, em termos práticos, é o exercício de uma discricionariedade regrada, a começar pelo limite objetivo que a lei impõe quanto ao valor da penalidade.
Além disso, o direito sancionador invariavelmente exige a fundamentação das penalidades, sobretudo para evitar eventual desvio ou abuso.
Mais que isso, em relação à aplicação da penalidade em questão, a lei local, estabelece que as infrações serão apuradas mediante processo administrativo, iniciado pela expedição do auto de infração.
A propósito, já decidiu essa Corte de Justiça:
“ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL – AUTO DE INFRAÇÃO – IRREGULARIDADE – FALTA DE DESCRIÇÃO DO FATO QUE CONFIGURA INFRAÇÃO À LEGISLAÇÃO AMBIENTAL – CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA -AUSÊNCIA DE EMBASAMENTO LEGAL – RETIFICAÇÃO DA INSTRUÇÃO NORMATIVA N. 91/06 DO IBAMA – MERA CORREÇÃO – BENEFÍCIO AO PARTICULAR 1. Por afronta aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, padece de nulidade o auto de infração que não descreve de forma detalhada os fatos ou circunstâncias que configuram infração à legislação ambiental . 2. Defensável se mostra a tese de retroatividade da Retificação da Instrução Normativa n. 91/06 do IBAMA. Isso porque, além ser perceptível que o objetivo do administrador foi apenas corrigir a redação anterior com o propósito de direcionar a interpretação da norma ao verdadeiro interesse da Administração, convém ponderar que a nova formulação do dispositivo aparenta ser mais favorável ao particular.” (TJSC, Apelação Cível n. 2012.041790-3, de Balneário Camboriú, j. 13.08.2013).
Não se olvide, ainda, que o art. 97 do Decreto n. 6.514/2008 dispõe que “O auto de infração deverá ser lavrado em impresso próprio, com a identificação do autuado, a descrição clara e objetiva das infrações administrativas constatadas e a indicação dos respectivos dispositivos legais e regulamentares infringidos, não devendo conter emendas ou rasuras que comprometam sua validade”, o que certamente não foi feito no caso dos autos.
Com efeito, contrariando a legislação de regência, o auto de infração de fl. 19 possui apenas a fundamentação genérica de “obstrução de acesso à praia conforme exigido pelo Ministério Público”, o que torna imperiosa a declaração de nulidade do ato administrativo.
Dessa forma, os impetrantes possuem razão ao mencionar que o auto n. 1568 é eivado de ilegalidade por violar o contraditório e a ampla defesa, uma vez que sequer se instaurou procedimento administrativo para a instituição da servidão de passagem administrativa.
A propósito, leciona Marçal Justen Filho que “a validade da constituição da servidão depende da adoção do devido processo administrativo, em que o particular titular do imóvel afetado possa manifestar-se previamente” (Curso de Direito Administrativo. 12º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 473).
Assim, de acordo com os autos, verifica-se que os impetrantes tiveram violados o direito ao contraditório e à ampla defesa.
Houve, portanto, inegável ofensa às normas contidas nos incisos LIV e LV do art. 5.º da CF, respectivamente, verbis: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens e sem o devido processo legal” “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Por tais razões, a sentença não merece reparos, negando-se provimento à remessa necessária.
Ante o exposto, voto no sentido de negar provimento à remessa.