APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA DE ATO JURÍDICO (AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL E MULTA ADMINISTRATIVA) DECRETO DE PROCEDÊNCIA NO PRIMEIRO GRAU, RECONHECENDO-SE A PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA ESTATAL. APELO DA FLORAM, CONCORDANDO COM O DECRETO DA PRESCRIÇÃO APENAS EM RELAÇÃO À APLICAÇÃO DAS SANÇÕES DE ÍNDOLE ADMINISTRATIVA, RESSALVANDO-SE, PORÉM, A REPARAÇÃO CIVIL DO DANO AMBIENTAL, QUE ENTENDE SER IMPRESCRITÍVEL. NATUREZA MERAMENTE DECLARATÓRIA DA PRETENSÃO. POSSIBILIDADE, A TÍTULO DE ESCLARECIMENTO. INTELIGÊNCIA DO ART. 19, CPC/2015. TESE FIXADA, ADEMAIS, PELO STF, NO TEMA 999: ‘É IMPRESCRITÍVEL A PRETENSÃO DE REPARAÇÃO CIVIL DE DANO AMBIENTAL’. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO, APENAS PARA ESCLARECIMENTO.
A ação declaratória é a ação a respeito de ser ou não ser a relação jurídica. Supõe a pureza (relativa) do enunciado que se postula; por ele, não se pede condenação, nem constituição, nem mandamento, nem execução.
Só se pede para que se torne claro (declare), que se ilumine o recanto do mundo jurídico para ver se é, ou se não é, a relação jurídica de que se trata.
O enunciado é só enunciado de existência. A prestação jurisdicional consiste em simples clarificação (Pontes de Miranda).
(TJ-SC – AC: 03192804420158240023 Capital 0319280-44.2015.8.24.0023, Relator: Pedro Manoel Abreu, Data de Julgamento: 28/04/2020, Primeira Câmara de Direito Público)
RELATÓRIO
A Fundação Municipal do Meio Ambiente – FLORAM interpôs recurso de apelação contra sentença proferida nos autos da ação anulatória de ato jurídico movida por Aroldo Boschetti Soster.
A sentença julgou procedente o pedido inicial para tornar sem efeito o AIA 10160, revogando a decisão de pp. 48-49, que indeferiu a liminar. O requerido foi ainda condenado ao pagamento de 10% do valor atualizado da causa, nos termos do art. 85, parágrafos segundo e terceiro, do CPC.
Irresignada, disse a apelante, em suma, que:
a) trata-se de ação anulatória ajuizada por Aroldo Boschetti Soster em face da Fundação Municipal do Meio Ambiente de Florianópolis – FLORAM, ao discordar da atuação da FLORAM, no Processo Administrativo (PA) nº 45555/2009;
b) verbera que o autor entendeu não ter se configurado dano algum, pelo que pugnou pelo reconhecimento da prescrição intercorrente da ação e pela nulidade do processo, em vista de cerceamento de defesa;
c) argumenta, assim, que o objeto da lide é um PA instaurado a partir da constatação de ocorrência de infração ambiental administrativa perpetrada pelo autor, descrita no Auto de Infração Ambiental – AIA nº 10160;
d) processado regularmente o feito administrativo, houve julgamento, por meio de decisão devidamente fundamentada, sobrevindo condenação do autor ao pagamento de multa simples no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) e apresentação de Plano de Recuperação da Área Degradada – PRAD;
e) já em juízo, o magistrado, ao sentenciar o feito, reconheceu a prescrição intercorrente, pois os marcos interruptivos a serem considerados são a da data de lavratura do auto e a data de julgamento, tendo entre interregnos transcorridos mais de três anos;
f) não discorda da parte da sentença que reconheceu a prescrição dos autos administrativos, mas outro excerto da decisão afirma que, pelo fato de o Município ter autorizado a construção em parte do imóvel em local diferente de onde ocorreu a infração ambiental, teriam o Município, e, por conseguinte, a FLORAM, anuído tacitamente para com a degradação ambiental da área, que, aliás, constitui APP;
g) a prescrição somente deveria atingir a pena de multa, decorrente do dano ambiental, mas jamais da obrigação de recuperar a área degradada, posto que essa é imprescritível;
h) a sentença deixou a entender que, ao conceder autorização para construir ao autor, teria o Município afastado a caracterização da área como APP.
Ao final, pugnou pelo provimento do apelo, a fim de se anular a sentença, para reconhecer a prescrição apenas em relação à multa aplicada, uma vez que a obrigação de reparar o dano é imprescritível.
Em sede de contrarrazões, o apelado manifestou-se pelo desprovimento do recurso, condenando-se a recorrente ao pagamento dos honorários recursais.
A douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da lavra do Dr. Alexandre Herculano Abreu, deixou de se manifestar sobre o mérito da contenda, por entender que não há no feito interesse a ser tutelado pelo órgão ministerial.
Este é o relatório.
VOTO
Sem delongas, o apelo merece ser parcialmente provido.
De imediato, sublinho que o imbróglio vertido no apelo se resume a um só aspecto: o de que o dano ambiental, isto é, a obrigação de reparar o dano ambiental é imprescritível, e deveria ter ficado a salvo na sentença.
Nesse caminho, a FLORAM foi expressa ao admitir que a pretensão punitiva, isto é, a multa administrativa aplicada no PA, está mesmo prescrita, como dito na sentença.
Seu pedido, entretanto, se resume à ressalva que deveria ter constado na sentença no tocante à caracterização da área como APP, e que a reparação do dano ambiental não se sujeitaria aos prazos extintivos.
Nesse caminho, aliás, pondero que o órgão ministerial obrou em equívoco ao atestar em seu parecer não haver interesse público ou coletivo a ser tutelado.
Provavelmente porque o objeto principal da lide é a anulação de multa administrativa, demanda que vem sendo considerada por aquele órgão como demanda de caráter meramente patrimonial.
O exame do recurso mostra, todavia, que a matéria versada na lide é de natureza ambiental, mesmo considerando-se o escopo único do autor, que é patrimonial.
Só que, no sentido oposto, estava a coletividade, possivelmente afetada por degradação ambiental. De qualquer sorte, tal ilação é mera retórica, pois oportunizado ao Parquet acesso ao conteúdo dos autos, daí não se inferindo qualquer nulidade.
No que concerne ao pedido em si, tem-se que a pretensão é meramente declaratória, dado que o objeto principal da demanda foi devidamente resolvido na sentença, resultado com o qual, inclusive, a própria apelante concordou expressamente em seu recurso. Veja-se o excerto da sentença com o qual não concorda a recorrente:
Vale frisar, ao final, que o AIA n. 10160 foi lavrado por supressão de vegetação nativa, escavação e remoção de areia dunar, e se a própria Prefeitura aprovou projeto e concedeu alvará de licença para construção no mesmo local, passou a assumir os danos e riscos causados ao meio ambiente.
Com a devida venia à apelante, seria até discutível seu interesse processual em tal pedido, dado que em nenhum momento a sentença descaracterizou a área como APP.
O que a sentença fez, foi considerar que a licença para construir outorgada pela Prefeitura afetou a higidez da multa administrativa, e, ainda assim, quer parecer que o fundamento foi trazido apenas como reforço argumentativo, dado que a pena pecuniária havia sido atingida pela prescrição.
Todavia, inovou o CPC de 2015, no art. 19, ao estabelecer que “Art. 15. O interesse do autor pode limitar-se à declaração: I – da existência, da inexistência ou do modo de ser de uma relação jurídica.’
Pontes de Miranda, citado por Rodrigo da Cunha Lima Freire, assim se posicionou sobre as ações declaratórias:
A ação declaratória é a ação a respeito de ser ou não ser a relação jurídica. Supõe a pureza (relativa) do enunciado que se postula; por ele, não se pede condenação, nem constituição, nem mandamento, nem execução. Só se pede para que se torne claro (declare), que se ilumine o recanto do mundo jurídico para ver se é, ou se não é, a relação jurídica de que se trata. O enunciado é só enunciado de existência. A prestação jurisdicional consiste em simples clarificação (in Novo Código de Processo Civil. 7 ed. Salvador: Juspodvm, 2017. p. 84).
Na espécie, havendo de fato interesse (coletivo, inclusive) em se ressalvar que o dano ambiental causado em APP é imprescritível, é lícito que se o declare, a título de mero esclarecimento, tal modo de ser da relação jurídica.
No tocante à pretensão de esclarecimento, observa-se, nesse caminho, que o STF reconheceu a repercussão geral sobre o tema da imprescritibilidade do dano ambiental no seguinte acórdão paradigma, que rendeu azo à edição do Tema 999, in verbis:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DANO AO MEIO AMBIENTE. REPARAÇÃO CIVIL. IMPRESCRITIBILIDADE. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. 1. Revela especial relevância, na forma do art. 102, § 3º, da Constituição, a questão acerca da imprescritibilidade da pretensão de reparação civil do dano ambiental. 2. Repercussão geral da matéria reconhecida, nos termos do art. 1.035 do CPC.
( RE 654833 RG, Relator (a): Min. ALEXANDRE DE MORAES, julgado em 31/05/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-126 DIVULG 25-06-2018 P. 26.06.2018).
Referido Tema 999 foi devidamente julgado, fixando-se a seguinte Tese: é imprescritível a pretensão de reparação civil do dano ambiental”. Esta Corte, sobre o tema, assim se posicionou, em acórdão da lavra do signatário:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DEMOLITÓRIA. AMPLIAÇÃO ERIGIDA SEM ALVARÁ DE CONSTRUÇÃO, EM DESCONFORMIDADE COM A LEGISLAÇÃO MUNICIPAL. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. INSURGÊNCIA DO REQUERIDO. PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO ACOLHIMENTO. PROVA DOCUMENTAL SUFICIENTE PARA FORMAR A CONVICÇÃO DO JULGADOR. JUIZ DESTINATÁRIO DAS PROVAS. PRERROGATIVA DE REFUTAR A REALIZAÇÃO DE PROVAS DESNECESSÁRIAS. PRELIMINAR AFASTADA.
O STJ possui entendimento de que o magistrado tem ampla liberdade para analisar a conveniência e a necessidade da produção de provas, podendo proceder ao julgamento antecipado da lide, se considerar que há elementos nos autos suficientes para a formação da sua convicção quanto às questões de fato ou de direito vertidas no processo, sem que isso implique qualquer ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa. (…)
Agravo interno não provido. (STJ. Rel. Ministro Benedito Gonçalves). PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA, ANTE A IMPRESCRITIBILIDADE DA REPARAÇÃO DO DANO AMBIENTAL.
No que se refere à prescrição da pretensão, resta sedimentado o entendimento de que, no presente caso, ‘o bem jurídico a ser tutelado é incompatível com o instituto da prescrição nos moldes alinhados na r. sentença.
Primeiro, porque se trata de dano ambiental, cujos efeitos se perpetuam no tempo – enquanto o fato ou ato causador do dano existir, há contínua violação do direito subjetivo público. Segundo, que a natureza da demanda é essencialmente cominatória, consistente na obrigação de fazer – demolição do muro de arrimo que supostamente agride o meio ambiente’
(TJSC. Rel. Des. Luiz Cézar Medeiros). CONSTRUÇÃO IRREGULAR, ERIGIDA EM ÁREA NON AEDIFICANDI . IMPOSSIBILIDADE DE REGULARIZAÇÃO. AMPLIAÇÃO DO IMÓVEL REALIZADA SEM AUTORIZAÇÃO E EM DESRESPEITO ÀS NORMAS DE RECUO. EDIFICAÇÃO QUE NÃO OBSERVOU O AFASTAMENTO OBRIGATÓRIO DO CURSO DO RIO LOCALIZADO A 3 METROS DO IMÓVEL. INOBSERVÂNCIA DA LEGISLAÇÃO DE REGÊNCIA. LEI N. 4.771/65 (ANTIGO CÓDIGO FLORESTAL) E LEI N. 6 .7 6 6 / 7 9 (LEI DE PARCELAMENTO DE SOLO). SUSPENSÃO DO PROCESSO. DESNECESSIDADE NO CASO CONCRETO. DEMOLIÇÃO DA AMPLIAÇÃO REALIZADA. NECESSIDADE.
A demolição de obra clandestina, por óbvias razões, pode ser efetivada mediante ordem sumária da Prefeitura, porque, em tal caso, o particular está incidindo em manifesto ilícito administrativo com o só fato de frustrar a apreciação do projeto, que é pressuposto legal de toda construção.
Como a construção é atividade sujeita a licenciamento pelo Poder Público, a ausência de licença para construir faz presumir um dano potencial à Administração e à coletividade, consistente na privação do exame do projeto e na possibilidade de insegurança e inadequação da obra às exigências técnicas e urbanísticas (Helly Lopes Meirelles). SENTENÇA BEM LANÇADA. RECURSO DESPROVIDO. FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS RECURSAIS.
(TJSC, Apelação Cível n. 0004086-72.2014.8.24.0036, de Jaraguá do Sul, rel. Des. Pedro Manoel Abreu, Primeira Câmara de Direito Público, j. 29-10-2019).
É o caso, portanto, de acolher o recurso e sua pretensão meramente declaratória – deixando-se claro que não existe qualquer nulidade na sentença, ao contrário do requerido no recurso – para afirmar que pretensão à reparação civil e a recuperação da área degradada não se sujeitam à prescrição, nos termos da Tese fixada no Tema 999, pelo STF.
Em face do exposto, dá-se provimento parcial ao recurso, apenas para esclarecer que a pretensão civil à reparação do dano ambiental e a recuperação da área degradada não se sujeitam à prescrição, nos termos da Tese fixada pelo STF, no Tema 999.
Este é o voto.